Um médica veterinária Doente

Ao lado de bombeiros e astronautas, ser médico veterinário é algo que passa pelo imaginário de muitas crianças. Este ano essa possibilidade foi dada ao maior número de alunos de sempre: cerca de 500 vagas para o concretizar de um sonho laborioso. O futuro Caloiro esfrega as mãos pensando que é fartura toda esta vaga, mal sabe ele quanta fome vai passar.
França tem 65 milhões de habitantes, mas em 2012 formou apenas 697 médicos veterinários (1). O Reino Unido tem 63 milhões, mas em 2011 formou apenas 833 (2). O que andamos nós então a fazer no nosso Portugal de 11 milhões com tanta vaga? Bem, das 6 faculdades (mais Açores) 2 são privadas e quanto mais alunos formarem melhor. O Ministério da Educação não regula vagas e a bastonária da nossa Ordem é também diretora de uma dessas escolas privadas (3), ou seja, o privado pode formar às pazadas e nem um exame de acesso à Ordem para triar o trigo do joio.
As públicas estão financeiramente estranguladas e tentam fazer magia contabilística: aumentar o número de alunos, receber mais verbas do Estado porque têm mais alunos mas continuar a investir o mesmo do que quando tinham menos alunos. Que se dane o Caloiro no laboratório apinhado, que se dane a classe que já tem mais médicos veterinários do que devia e que se dane o Estado com a sua austeridade, o que interessa é salvar faculdades de que nem sequer precisamos.
Mas o Caloiro entra no curso. Paga propinas, fustiga a massa cerebral com as matérias, disciplina os sentidos nas necropsias e mexe em todo o fluido biológico possível e imaginário até saber sobre animais grandes e pequenos, com pelo ou escamas, vivos ou mortos, comestíveis ou não. Ao fim de 5 anos aprendeu a enfrentar cornos, garras, coices e dentadas, mas nada o preparou para o mercado de trabalho.
É o Aluno que escolhe onde estagia, mas as condições não estão regulamentadas, são decididas pela boa vontade do médico veterinário que o recebe. Assim, geralmente o Aluno dá por si a trabalhar numa zona totalmente obscura da regulamentação laboral: ele é estudante e não remunerado mas, oh Deus, trabalha como se estivesse em plena revolução industrial. É cada vez mais comum encontrar colegas que simultaneamente e sistematicamente fazem mais de 60 horas semanais, têm 4 dias de folga por mês, não têm folgas ao fim de semana, fazem noites, urgências depois de 12 horas já trabalhadas, fazem noite e entram de tarde no dia seguinte e trabalham 12 dias consecutivos. Parece o Oeste selvagem, mas ainda menos pedagógico! É uma mão-de-obra tão boa que há já estabelecimentos médico-veterinários cujo normal funcionamento depende da presença de estagiários. Mas o Aluno aguenta, desespera de vez em quando, mas aguenta: ele aprendeu que afinal o animal é ele.
Quando defende a tese de mestrado e sai para o mercado de trabalho este Médico Veterinário já está amestrado. O mercado está saturado, o oportunismo está ao rubro e os colegas de profissão com funções patronais não têm vergonha na cara. A única solução de trabalho é um estágio profissional onde o investimento de 6 anos de curso é recompensado com 691 euros mensais (4), dos quais o Instituto de Formação Profissional (IEFP) paga 80%(5). E quem é que não quer empregar um médico veterinário por pouco mais de 140 euros/mês? Até já se despedem médicos veterinários com experiência para os substituir por estagiários profissionais. O IEFP exclui médicos e enfermeiros destes estágios, mas ninguém se lembrou dos médicos veterinários com os seus turnos e urgências (6). É que nos termos esclavagistas que nos oferecem temos colegas que ganham 2,21€/hora , outros 3€/hora e por ai, sem direito a férias ou subsídios.
Mas não basta pagar pouco, não, é mesmo preciso trucidar o código legal do trabalho: lá para os lados do Cacém trabalha-se 70 horas semanais sem receber mais por isso (7)(8), na margem sul os estagiários profissionais só fazem noites e não existe o conceito de trabalho nocturno (9), em Lisboa o estagiário não pode aprender cirurgia porque pode vir a ser concorrência, há sítios onde há 4 folgas por mês mas em duas dessas folgas tem que se comparecer no local de trabalho para a reunião de serviço, 12 dias consecutivos de trabalho é o pão nosso de cada dia (10) e no Norte um hospital faz bandeira de ter uma equipa tão jovem e organizada que está sempre “pronta a abdicar da sua vida pessoal em prol de um serviço cuidado e completo”. Tudo isto acontece em todo o lado na vida de clínicos recém-mestrados que sabem ter o seu trabalho demasiado descartável para terem coragem de se insurgir. Tudo isto acontece em todo o lado e bem nas barbas da Ordem dos Médicos Veterinários que coloca placas bonitas com o seu nome em estabelecimentos que pisam a dignidade da profissão (a tal que vem no art.º 24 do nosso código deontológico).
A vida não está fácil para este clínico recém-mestrado para quem o estágio profissional só dura um ano. As propostas que encontra são degradantes, mas parece que há sempre alguém idiota ou desesperado o suficiente para trabalhar ainda mais e ganhar ainda menos. Que sociedade triste esta que o obriga a escolher entre ser veterinário ou ser feliz.
(1)http://csovsite.yoocan.fr/…/798_Stats%20Rapport%20annuel%20…
(2) http://www.rcvs.org.uk/publications/rcvs-facts-2012/
(3) http://fmv.ulusofona.pt/
(4) Diário da República, 1ª série – nº115 – 18 de Junho de 2013 - Artigo 12.º
(5) Diário da República, 1ª série – nº115 – 18 de Junho de 2013 - Artigo 15.º
(6) Diário da República, 1ª série – nº115 – 18 de Junho de 2013 - Artigo 1.º
(7) http://www.cite.gov.pt/pt/legis/CodTrab_L1_005.html#L005S02
(8) www.cite.gov.pt/pt/legis/CodTrab_L1_005.html#L005S07
(9) http://www.cite.gov.pt/pt/legis/CodTrab_L1_005.html#L005S06
(10) http://www.cite.gov.pt/pt/legis/CodTrab_L1_005.html#L005S08

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